sábado, 29 de maio de 2021

A criança em nós

 

Imagem via tumblr

    A criança em nós vive e se delicia com suas peripécias, por isso, é porta voz da nossa inocência e também ingenuidades. Ao mesmo tempo em que nos coloca diante das experiências diversas de forma pura (inocência) porque é essa sua natureza, nos presenteia com a condição do aprendizado, pois, sem ver os obstáculos ou perigos (ingenuidade), nos lançamos na vida. Sendo assim, é nas experiências que nossa criança nos lança inocente e ingenuamente à vida e que podemos compor um pouco mais de nós. É assim que podemos reencontrar, nas experiências, aquilo que talvez nos falte despertar, dentro. Mas, é a ingenuidade que pode nos lançar em experiências que nos machucam ou nos fere. A criança vai ou nos coloca na vida, mas não tem ainda maturidade para selecionar aquilo que é “bom ou ruim”, fora ou dentro. E nessas experiências, é que precisamos despertar o adulto que nem sempre está presente ainda, é aí que precisamos começar a trazê-lo para esta cena, junto a nossa criança. É, muitas vezes, através dessas experiências frustrantes e difíceis que aprendemos e despertamos para a maturidade.

    E vejam, quando estamos feridos pela nossa própria ingenuidade o que vem em consequência, normalmente? O revide, o chumbo trocado, as atitudes agressivas, as birras, as revoltas e toda sorte de comportamentos destrutivos, sejam eles velados ou não, ali estará ela, a vingança da ingenuidade da criança. Vingamo-nos das experiências que nos frustram e nos fere, e esta vingança pode estar escalonada em diversos níveis de acordo com a consciência que nos rege. Assim como as frustrações e as feridas acontecem em diversos níveis, dentro de nós (mais consciente e menos consciente) é na mesma medida a “vingança ou o revide”- comportamentos destrutivos. Deve-se ressaltar aqui que estas feridas, podem, muitas vezes, serem profundas e dolorosas e portanto, não é possível generalizar nada, cada vivência é única e requer sempre, um olhar de reconhecimento, para essa unicidade.

    Porém, diante dos revides, pode-se dizer que é como se a criança dentro de nós, estivesse mostrando a língua para aquilo ou aquele que não corresponde à expectativa dela e sentindo-se intimamente, impotente ou insegura para agir efetivamente, sobre a situação, então, prefere e escolhe o que está ao seu alcance – mostrar a língua, revidar jogando algo no amiguinho (risos) ou ainda esperneando, entre outros comportamentos. E fazemos isso com frequência. Nossas infantilidades estão presentes a todo o momento, nos acompanha em muitos níveis e em diversas situações. Não há o que se culpar por esses comportamentos, primitivos ou infantis, todos nós, humanos, o temos, porém, a questão é que os mesmos, na maioria das vezes, estão livres atravessando nossas ações e escolhas, de forma inconsciente e isto, é destrutivo, para nós e para o outro dependendo do nível que isso se encontra e a qual experiência, o mesmo está revidando.

    Essa criança é a criança em amadurecimento, em desenvolvimento dentro de nós e precisamos muito dela e também de seus atributos para despertar o adulto íntimo que também todos temos, como mencionei acima. Ela é a responsável por nossas aventuras por aí, situações diferentes e novas em nossas vidas; vamos com ela, explorando novos espaços e situações, ao mesmo tempo em que vamos, nos explorando intimamente, nisso tudo; descobrimos ou despertamos nossas habilidades e potenciais, vemos a nossa força e coragem presentes, vamos nos percebendo ativos e criativos, a partir daquilo que exploramos. É ela, inclusive, que nos mostra, que aquilo que fazemos cotidianamente, em tarefas, aparentemente, banais e tão comuns, estes gestos ou ações, sempre possuem um pouco desse potencial intrínseco a todo ser. Tudo, absolutamente tudo que realizamos, estamos lá, nós, seres criativos, semeando sempre um pouco mais de nós e é nossa criança que pode nos mostrar tudo isso. E vendo-nos através dos olhos da criança, nessas ações, vamos ampliando cada vez mais a nós mesmos porque presenciamos (vivendo) aquilo que em nós é tão natural e se expõe de forma tão espontânea.

    É esta criança, inclusive, que nos faz errar, nos coloca em situações constrangedoras e nos faz ver que somente assim, ela vai poder crescer ou aprender, através das suas experimentações com a vida e assim, se sentindo viva. Cabe-nos sem dúvida, estarmos atentos, quanto ao deixar essa criança solta por aí, só fazendo bobagem (risos). Precisamos cuidar dela, para que a mesma com sua ingenuidade e avidez, não se torne um perigo para si mesmo. Pois as situações perigosas externas, assim como, as internas vão se apresentar, até mesmo para que esta criança aprenda a chamar o adulto que caminha com ela ou pelo menos, deveria caminhar. Então, ela o chamará ou mesmo, através de suas feridas ou machucados que irão doer, é que a mesma vai chamar a atenção desse adulto, para que ele a ajude, a se curar e até a reconhece-la.

    Tudo isso dentro de nós. E há quem pense que isso é muito complicado e que haja muita gente dentro de nós. E sim, a alma humana não é algo simples, é complexa mesmo. E quem sabe, seja tão simples que esbarra na complexidade de nossa condição racional em explicar tudo isso. Porém, por enquanto, é o que podemos fazer por nós mesmos e compreendermo-nos a partir desses parâmetros. Mas, saibamos que a vida é tão dinâmica e tão criativa que nos oferece caminhos novos o tempo todo; novas formas de ver e enxergar a mesma experiência ou a si mesmo. Portanto, estejamos atentos, as diversas formas de expressões que há aí fora, em interação conosco. 

    Muitas expressões da vida, falarão alto dentro de nós e isso é sem dúvida um reencontro consigo mesmo. E há outras que não falarão a nós e certamente, devemos aprender a deixar ir e não permitir que nossa criança perca tempo se debatendo com algo que já diz por todas as formas que nada tem a ver conosco. E ainda há aquelas experiências que falam alto a nós, por um tempo e depois, já não dizem mais nada ou se dizem, a criança já está olhando para outras coisas que a permite, ir mais longe um pouco mais, na sua caminhada. Lembrem-se criança é criança e é ativa, criativa e sempre estará explorando e ampliando, certas brincadeiras. A criança segue o ritmo da vida, a dança dessa natureza, portanto, nem sempre diz claramente: “acabou a brincadeira, passemos para a próxima, ela simplesmente, vai”. E nisso é outra coisa que precisamos educa-la porque haverá situações que tudo bem, não dizer tchau, não encerrar o que estava fazendo, mas há outras que ela precisa encerrar e nem sempre ela quer fazer isso. Lembremos que, às vezes, a criança quer tudo: o chocolate, agrado, brincar, mesmo estando com sono e tendo lição de casa para fazer. Então, direciona-la e educa-la, faz parte e dizer-lhe que, às vezes, ela terá que dizer tchau ou adeus e que isto faz parte, é fundamental. Algumas coisas poderão permanecer em sua vida e outras não mais, ela terá que escolher porque não pode ter e fazer tudo que deseja.

    Há crianças e crianças por aí em suas infinitas faces, então, que saibamos reconhecer a nossa. Há muitas que ainda se debatem com o brinquedo que não lhe pertence quando já tem seus próprios brinquedos, há outras que ficam puxando o brinquedo alheio até destruí-lo ou quebra-lo, só para que de alguma forma o outro também não tenha, como ela pensa não ter, o tal brinquedo. Há crianças que se encolhem em seu canto e apenas choram e acreditam que o mundo está contra ela ou que ninguém a ama ou ainda que ela nasceu, só para chorar mesmo e estar sozinha. Há crianças que vivem tão intensamente, o seu super-herói que acabam acreditando que é o próprio e que devem salvar a todo mundo e por isso, acabam sendo inconvenientes. Há crianças que pensam que todos precisam vê-la, aplaudi-la e saciar a sede de atenção que não cessa, nela mesma. Enfim, há crianças e crianças e há momentos e momentos para estas crianças todas. Por isso e muito mais, cuidar desta que nos acompanha e trazê-la junto, se faz tão importante. Isso interfere sempre em nossas relações e escolhas na vida.

    E eis que haverá um tempo que este adulto e esta criança, estarão tão sintonizados, próximos ou integrados que se manifestarão numa única voz. Isto poderá ser vivido como um renascimento. Sim, nisto, este adulto também já aprendeu muito com essa criança, a lidar com suas birras, a ver que a mesma tinha razão em muitos momentos, que esta o alertou sobre determinados momentos, mas o mesmo não ouviu, entre outros aprendizados. E esta criança compreenderá que aquilo que o adulto fez por ela, é algo que ninguém mais poderia fazer, seja protegendo, cuidando ou educando, ele estava lá. Seja acertando e até errando, ele estava lá. Então, cria-se uma afinidade tão grande, gigantesca nessa relação que seja o adulto ou seja a criança a falar, essa voz se fará de outra forma. Não terá mais o tom infantil propriamente e nem tão pouco a seriedade do adulto, é outro o tom. Desses dois, nasce sim, um terceiro tom que certamente, regerá nossos passos de forma mais inteira e mais sábia.

    Talvez não se caracterize por um terceiro personagem em nós, além da criança ou o adulto. Mas, sim um tom, indefinido, mas um tom novo e que fará a diferença em nossas jornadas, concedendo um passo mais profundo para dentro e mais amplo em sua expansão. Tornamo-nos assim, não apenas mais maduros, mas também ampliamos nossa visão, frente às experiências da vida e já podemos a partir do tom que escutamos dessa integração, selecionar o que diz respeito a nós mesmos ou a este novo tom que nasce em nós e que de alguma forma, iremos sentir e saber a que se refere. Mas, isso, é assunto para outro momento.

    Sem querer encerrar o assunto ou mesmo limita-lo, a criança em nós, pode ser vista por esses ângulos que eu trouxe aqui e a partir dos mesmos, de acordo com a nossa experiência, certamente, ter o seu tom único e peculiar. Consegue perceber sua criança íntima, consegue saber do que ela é capaz e como ela reage em determinadas experiências? Sinta, ela está aí e certamente, a espera do seu olhar.

Kátia de Souza – 25/05/2021