domingo, 24 de novembro de 2019

O lugar da divindade na psicologia humana (Jung)


Rosácea gótica da Catedral de Trento, norte da Itália — Foto de Goodday
(Nesse trecho, abaixo postado, Jung fala sobre a os aspectos "divinos" ou as divindades a partir da análise de alguns sonhos de um de seus pacientes, encontrando elementos nos mesmos que denunciam os arquétipos relacionados ao tema. E mais, o quanto estas divindades, ao longo do tempo, são substituídas pela totalidade do homem(self) e isso é denunciado por esses arquétipos e expressos em alguns símbolos como as mandalas - Kátia de Souza)


"Um sonho ou uma visão são exatamente aquilo que parecem ser. Não são disfarces de algo diferente, mas um produto natural, sem motivações exteriores. Já vi muitos mandalas de pacientes, que não sofreram qualquer influência externa, e quase sempre deparo com um fato idêntico: a ausência de uma divindade no centro. Via de regra, o centro é acentuado. Mas o que nele se encontra é um símbolo de significado muito diverso. É, p. ex., uma flor, uma cruz de braços iguais, uma pedra preciosa, uma taça cheia de água ou vinho, uma serpente enroscada, ou um ser humano, mas nunca um deus.

Ao depararmos com um Cristo triunfante na rosácea de uma igreja medieval, deduzimos, com razão, que deve tratar-se de um símbolo central do culto cristão. Concluímos igualmente que toda religião que se enraíza na história de um povo é uma manifestação de sua psicologia, como o é, p. ex., sua forma de governo. Se aplicarmos o mesmo método aos mandalas modernos que os homens vêem em sonhos ou visões, ou que então desenvolveram "por meio da imaginação ativa", chegaremos à conclusão de que os mandalas exprimem certa atitude que só podemos chamar de "religiosa". A religião é uma relação com valor supremo ou mais poderoso, seja ele positivo ou negativo, relação esta que pode ser voluntária ou involuntária; isto Unifica que alguém pode estar possuído inconscientemente por um "valor", ou seja, por um fator psíquico cheio de energia, ou que pode adotá-lo conscientemente. O fator psicológico que dentro do homem, possui um poder supremo, age como "Deus"' porque é sempre ao valor psíquico avassalador que se dá o nome de Deus. Logo que um deus deixa de ser um fator avassalador, converte-se num simples nome. Nele o essencial morreu e seu poder dissipou-se. Porque os deuses do Olimpo perderam seu prestígio e sua influência sobre a alma humana? Porque cumpriram sua tarefa e porque um novo mistério se iniciava: o Deus que se fez homem.

Quando alguém se permite tirar conclusões a partir de mandalas modernos, talvez tivesse que perguntar aos homens de hoje se veneram estrelas, sóis, flores ou serpentes. É evidente que o negarão, assegurando, ao mesmo tempo, que esferas, estrelas, cruzes e coisas da mesma natureza são símbolos de um centro que está dentro deles mesmos. E se perguntarmos o que entendem por tal centro, mostrar-se-ão um pouco embaraçados e aludirão a esta ou àquela experiência, como o fez, p. ex., meu paciente, resumindo o que sabia dizer de positivo sobre o "relógio do universo", ao confessar que a visão nele havia deixado um sentimento de harmonia perfeita. Outros relatam que tal visão ocorreu-lhes num momento de dor extrema ou de profundo desespero. Para outros se trata de recordação de um sonho impressionante, ou de um momento em que cessaram lutas prolongadas e estéreis e a paz os invadiu. Poderíamos resumir do seguinte modo o que as pessoas narram acerca de suas experiências: Elas voltaram a si mesmas; puderam aceitar-se; foram capazes de reconciliar-se consigo mesmas e assim se reconciliaram também com situações e acontecimentos adversos. Trata-se, quase sempre, do mesmo fato que outrora se expressava nestas palavras: "Fez as pazes com Deus, sacrificou a própria vontade, submetendo-se à vontade divina".

Um mandala moderno é uma confissão involuntária de uma situação espiritual particular. Não há divindade no mandala, nem tampouco se alude a uma submissão à divindade ou a uma reconciliação com ela. Parece que o lugar da divindade acha-se ocupado pela totalidade do homem."

Carl Gustav Jung (Psicologia e Religião)