INTRODUÇÃO
O vínculo formado entre homem e animal em seu estado primitivo é sobretudo uma cooperação. A paleontóloga Pat Shipman, da Universidade de Penn State, exemplifica:
“A conexão animal percorre toda a história humana e se conecta a outros grandes saltos evolutivos, incluindo a criação de ferramentas de pedra, a linguagem e a domesticação”.
E olhando através do nosso desfruto de vantagens evolutivas de outras espécies durante o tempo, é possível atribuir aos bichos papéis não só de sacrifício em prol da nossa subsistência – mas de agentes fundamentais para que chegássemos até aqui. Não só a funcionalidade dessa associação, mas a própria conexão e cuidado com outras criaturas faz com que a vida terrena seja mais completa.
O GATO COMO DIVINDADE
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| O gato de Gayer-Anderson. Feito de bronze com data aproximada de 664-332 a.C. |
Com o início da agricultura e os primeiros assentamentos urbanos no Egito, a propagação de roedores e parasitas em busca do alimento armazenado nas casas foi o convite favorável para que os gatos demonstrassem sua capacidade de caçar ratos, ratazanas e cobras – evitando grandes infestações e disseminando dessa forma a imagem felina como referência de proteção e vigilância.
Atribuindo o sucesso de suas colheitas, agora livres de parasitas, aos bichanos, os antigos começaram a produzir estátuas e pequenos amuletos da deusa, que significavam sorte e prosperidade. Assim, fizeram com que o gato se tornasse uma deidade oficial na forma de Bastet – deusa da fertilidade. Esta é representada no panteão egípcio por uma gata negra, que ostenta brincos nas orelhas e um colar com o olho de Hórus no pescoço. Na perspectiva antropozoomórfica, ela possui o corpo de uma mulher com a cabeça de gata, que traz na mão direita um sistro (instrumento musical), que quando embalado apaziguava a alma e dispersava as energias negativas.
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| Estátua de bronze de Bastet. Egito 664-332 a.C (Musée du Louvre) – Jacques Pasqueille.
E como cada cidade egípcia estava sob a proteção de um deus (a), Bubástis era guardada sob os olhos astutos de Bastet.
BUBÁSTIS E SEUS RITUAIS
Bubástis estava situada no Delta do rio Nilo, região conhecida como Baixo Egito – próxima a bacia do Mediterrâneo.
O encontro para venerar Bastet ocorria anualmente no período de Peret (semeadura). Presente desde o período do antigo império egípcio, a comemoração ganhou maior relevância com o reinado dos faraós naturais de Bubástis, da décima segunda dinastia, quando passou a ser uma divindade de cunho nacional.
Na iminência do festival, as sacerdotisas desciam o rio Nilo anunciando a proximidade do rito tocando snujs – uma espécie de sinos de metal que emitem diferentes sonoridades – conclamando os habitantes de aldeias e cidades vizinhas, para que todos pudessem participar do grandioso festival.
Atendendo ao chamado dos seres superiores que eram invocados pelas mãos das sacerdotisas, muitos moradores de terras distantes se dirigiam a Bubástis para celebrar a divindade com todas as formalidades que a mesma merecia. Heródoto retratou em Histórias o deslocamento dessas pessoas como parte e início do ritual.
Quando finalmente chegavam na cidade, o templo já estava devidamente preparado para recebê-los. A purificação do local se dava pelas mãos das mulheres de Bastet, que respaldadas pelo poder que lhes era atribuído, preparavam o ambiente por meio de gestos e ao som de hinos e cânticos ao mesmo tempo em que jogavam água e pétalas de flores.
Um dos hinos que eram cantados para a divindade nessa parte da festa era o ‘hino à Sekhmet-Bast’, cujo mesmo faz parte do Livro dos Mortos do Egito antigo.
Logo em seguida, dança, música, atos de amor e devoção, brincadeiras se intercalavam nesses dias festivos, regados com os vinhos produzidos na região do Delta. Em Histórias, Heródoto mais uma vez descreve o festival, desta vez exaltando a felicidade e diversão que lá pairava.
A presença da bebida se dava pelo aspecto mitológico, que afirmava Bastet como a versão apaziguada da deusa leoa sanguinária Sekhmet.
Sua natureza dupla se revelava no mito de como Rá acalmou Sekhmet, induzindo-a a beber vinho disfarçado como sangue. O vinho fez com que a leoa se deitasse às margens do rio, espreguiçando e transformando-se na dócil – mas não domesticada – gata. É a dualidade da força que reside no íntimo felino-feminino.
A partir de então, ela se tornou a deusa dos festivais, do prazer, da embriaguez, da maternidade e das artes em geral.
O ritual era ponto de encontro entre diferentes povos e proporcionava um momento de conexão espiritual, terrestre e inter-humana. Uma anestesia temporária e um acordar para o mundo que existe longe da palpabilidade; o evento oscilava entre culto e festa, porque para os deuses, os homens deveriam dedicar parte do seu tempo ao sagrado e também ao prazer, para que assim existisse uma completude (a diversão e a devoção) – conceito fundamental na religião egípcia.
Estátua da deidade egípcia Sekhmet no Museu de Turin, Itália.
A imagem da mulher com cabeça de leoa, encimada pelo disco solar, juba cheia de chamas e rosto cintilante como o Sol representava Sekhmet – a deusa que simbolizava os aspectos destrutivos solares. Na mitologia egípcia, ela era uma sumidade em guerras e batalhas. Possuía o poder de tanto causar como de curar epidemias, sendo assim, a patrona dos médicos. Seguindo esta narrativa, embora fosse símbolo de impetuosidade, a deusa também era capaz de operar a cura para os males que a mesma era capaz de causar.
Segundo o mito, Rá (Deus Sol), assumiu a forma de um homem e tornou-se o primeiro faraó. Regeu o Egito por um longo período – assegurando a prosperidade ao povo. Contudo, perante seu envelhecimento, os humanos começaram a desrespeitá-lo, zombando de sua autoridade e arquitetando planos conspiratórios a fim de promover uma revolta. A audácia provocou o descontentamento imediato de Rá, que convocou o conselho dos deuses e declarou sua intenção de punir a humanidade.
Clamou então, pela deusa Hathor, e com cólera em seus olhos a transformou em Sekhmet, enviando-a contra os homens. Porém, a leoa desencadeou um massacre tão horrível que a terra inundou-se com sangue. No momento em que Rá percebe a proporção do estrago feito, embebeda a deusa com vinho, como antes citado no artigo, para acalmar sua fúria – fazendo com que ela se transfigurasse em nosso objeto de estudo: Bastet.
Juntas Hathor, Bast e Sekhmet representavam a trindade da Grande Deusa, como Virgem, Mãe e Velha. No aspecto lunar, ela era a deusa-lua, irmã gêmea da deusa-sol Sekhmet. E sempre que seus atributos solares eram o ponto focal, a divindade assumia sua forma de leoa.
Sekhmet não é cruel; seu caráter intolerante era atado à falta de espírito de lei e ordem nos humanos – causando-lhe uma fúria punitiva e exterminadora. Ela é aquela que aplica a justiça de um ângulo que beneficia aqueles de bom caráter. Em suma, Sekhmet e Rá estão dentro do âmago humano, uma vez que são consciências macrocósmicas presentes dentro do nosso microcosmo. Ambos se complementam – é o aspecto cíclico de forças complementares.
ARTES VISUAIS
Durante o reinado de Amenófis III (1391 – 1353 a.C.), foram esculpidas numerosas estátuas da divindade, que embora sejam originárias da mesma pedreira, variam pelo aspecto de suas máscaras leoninas, grau de acabamento e dimensões (tamanho de um ser humano ou ainda maiores). Sentadas ou em pé, estas esculturas trazem sempre o disco solar sob a cabeça e na mão, a cruz ansata (ankh) – o sinal da vida. Atualmente por causa do grande número de estátuas, todos os museus de egiptologia do mundo conservam pelo menos um exemplar das peças.
MUMIFICAÇÃO ANIMAL
O Egito é referência de pirâmides, esfinges e principalmente múmias; porém não é tão comum ouvir falar sobre a mumificação animal. E isso ocorre porque o interesse acadêmico dos pesquisadores de adentrar nesse mundo é um tanto quanto recente. Antes de serem vistos como objetos de estudos, a maioria dessas múmias foram usadas como adubo ou lenha.
Nem sempre as mesmas foram desvalorizadas ou usadas para atividades práticas: durante a antiguidade, despertou interesse nos gregos e romanos que residiam ou visitavam o país no Período Tardio. Heródoto outra vez nos conta, em sua expedição ao país durante o século V A.C., sua visão acerca da relação entre os antigos e os animais em momentos fúnebres.
Os egípcios acreditavam que a técnica era vital para a passagem do morto para a outra vida. No caso dos animais, eles também foram mumificados pelo fato de não serem meros bichos de estimação, e sim encarnações de divindades extremamente complexas.
Os processos que os antigos usavam para mumificar alguns animais eram tão minuciosos quanto os dos cadáveres humanos. Foram milhões de gatos, pássaros e outras criaturas mumificadas em templos dedicados às suas entidades. Os arqueólogos também encontraram múmias de lagartos, de peixes e até de besouros.
Uma variação representativa acontecia em relação aos bichos. Nem todos eram vistos como entidades – gazelas, macacos, pequenos roedores e pássaros eram consideradas espécies de estima. Já outras eram sagradas, cultuadas em vida e usadas como imagem de determinados deuses – como Apís, representado por um touro.
Depois de falecerem de forma natural ou sacrificada, eram recolhidos para que nas mãos dos fiéis se tornassem uma oferenda para sua respectiva divindade. Por exemplo, os gatos (para Bastet), os leões (para Mahes e/ou Sekhemet), os crocodilos (para Sobek). E por fim, havia a mumificação animal para alimentação, que costumava contemplar peixes ou aves, extremamente bem conservadas para que o egípcio morto possuísse alimento suficiente na vida após a morte.
Muitas espécies de estima foram enterradas com seus respectivos donos. Porém, os animais que tinham maior popularidade e importância religiosa receberam necrópoles exclusivas. Tendo como exemplo a necrópole de babuínos relativos a Thot em Tuna el-Gebel ou a necrópole para canídeos, relacionados a Anúbis em Saqqara. Também é notável o caso da nossa Deusa Bastet, cujo templo foi encontrado em Bubástis. Os corpos dos gatos eram depositados em pequenos esquifes de madeira.
Bubástis passou por uma fase de decadência com o início da era cristã que chegou ao Egito, quando as antigas crenças faraônicas foram consideradas blasfêmias. A cidade não mais seria reconhecida pelo culto aos gatos, e as pequenas múmias destes felinos acabariam sendo negligenciadas nos séculos seguintes sendo vendidas como souvenir ou fertilizante (e não muito raramente deixadas para trás pelos pesquisadores responsáveis por áreas de necrópoles durante parte do século XIX). Contudo, atualmente as múmias de animais são consideradas artefatos de grande importância como vimos no início da pesquisa, pois conta uma história sobre a relação do egípcio com os animais.
A mumificação foi uma grande indústria que contribuiu para a diminuição de espécimes de falcões e para a extinção de pelo menos uma espécie de pássaro: os Ibis. Assim como os babuínos. Tanto era, que os egípcios fabricavam falsas oferendas de babuínos, criando múmias que pareciam reais no seu exterior, mas as tomografias feitas recentemente se revelaram falsificações elaboradas.
Entretanto, não se deve encarar a prática como um massacre. Egiptólogos dizem que os antigos acreditavam que quando mumificado, o animal envolvido detinha grande honra: pois este era criado pautado num propósito celestial e passaria a eternidade como divindade. Por fim, devemos compreender que os egípcios não estavam obcecados pela morte e sim pela vida póstuma – e a técnica de mumificação era uma forma de se perpetuar a alma da criatura velada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desse estudo voltado ao culto e celebração aos gatos, e a prática de mumificação, é possível notar como o caminhar da humanidade cambaleou em relação aos animais. Se hoje eles são lacaios, mercadorias e propriedades – no mundo antigo eles eram vistos como seres dotados de extensões e sensibilidades que jamais poderíamos possuir, portanto dignos de admiração, respeito e confiança.
Os bichos tiveram grande influência na preservação da raça humana – enquanto nós fizemos questão de extinguir algumas em nome do consumo e do “progresso”. Em vez de escravizar, nossos ancestrais possuíam uma dinâmica mística e sensível – que poderia ser ponto de partida para um pensar e um olhar mais humilde e sábio sobre aqueles que estão presos no mesmo plano conosco, e não por nós.
E é por esse viés de raciocínio, que indicamos aos leitores dois documentários sobre a indústria alimentar e a relação entre homem e animal, hoje em estado de calamidade.
- Earthlings (Terráqueos) – Um documentário emocionante estadunidense escrito, produzido e dirigido por Shaun Monson e co-produzido por Persia White, narrado pelo ator Joaquim Phoenix. Abrange a exploração animal de forma minuciosa. Completo e legendado no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=O4QnwUVQCN8
- What the Health – Kip Andersen e Keegan Kuhn produziram este documentário que analisa de perto a conexão entre a indústria farmacêutica e alimentar – mostrando que a fabricação de produtos de orgiem animal além de ser protagonista na destruição ambiental, muitas vezes é feita em benefício do adoecimento de corpos humanos, que irão consumir remédios e assim dar vida à grande engrenagem capitalista que nos rege. Está disponível na plataforma Netflix. E no Youtube com legenda: https://www.youtube.com/watch?v=Xh8Cn8jRpvw&t=111s
Trabalho e pesquisa executado por Clara Canedo, Elisa do Rosário e Tâmara Campos – alunas do primeiro período de História da Arte da Escola de Belas Artes – UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Trabalho e pesquisa executado por Clara Canedo, Elisa do Rosário e Tâmara Campos – alunas do primeiro período de História da Arte da Escola de Belas Artes – UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Link da fonte origem: https://hav120151.wordpress.com/
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