domingo, 24 de maio de 2020

Ícaro e a Embriaguez dos Sentidos por Angelita Corrêa Scardua

Dédalo e Ícaro (1869) - Óleo sobre tela de Frederic Leighton

Toda estória tem um começo, a de Ícaro não é diferente. Ícaro era filho de Dédalo, o melhor e mais conhecido dos artesãos e inventores da mitologia grega. Qualquer um que desejasse algo belo, funcional, engenhoso que fosse, deveria buscar as habilidades de Dédalo.

Dédalo, numa época de sua vida, tomou como aprendiz seu sobrinho, Talos. Talos revelou um assombroso talento que, aparentemente, poderia suplantar o de Dédalo. Diz o mito que foi Talos quem inventou o primeiro serrote, a roda do oleiro e imaginou o primeiro par de compassos. Não tardou para que a reputação do jovem aprendiz ultrapassasse os limites da oficina de seu mestre. O sucesso de Talos, a procura crescente por seus serviços, começou a corroer de ciúmes o pobre Dédalo. A insegurança do mestre artesão, sua incapacidade de reconhecer e aceitar a concorrência do sobrinho, levou-o a uma decisão egoísta e cruel, atrair o aprendiz até o até o topo do templo de Atena e empurrá-lo para a morte.

Dédalo tinha um filho, Ícaro, com quem foi banido da cidade de Atenas como punição para o crime contra Talos. O rei de Creta, Minos, apreciava a arte de Dédalo e, por isso, acolheu pai e filho em sua ilha. Antes de tornar-se rei de Creta, Minos disputou o trono com dois irmãos seus, e a incerteza da vitória atormentava-lhe os dias. Foi quando ele teve a idéia de recorrer a Netuno, o deus dos mares. Minos pediu a Netuno que enviasse um sinal confirmando o seu reinado sobre Creta. Netuno, então, fez um trato com o futuro rei: mandaria-lhe como sinal um esplendoroso touro branco que emergiria das ondas, em troca Minos sacrificaria o magnífico touro em honra ao próprio deus Netuno. Acordo feito…e não cumprido. Ao invés de sacrificar o touro sagrado enviado por Netuno, Minos sacrificou um touro comum. É claro que ele não contava com o fato de que a percepção divina era muito mais apurada do que a humana e, é lógico, Netuno logo viu que fora enganado.

Netuno queria vingança, e a vaidade de Dédalo serviu como uma luva para o propósito do deus. A mulher de Minos, Pasífae, foi enfeitiçada por Afrodite a pedido de Netuno. Tomada pela força afrodisíaca da paixão, Pasífae enamorou-se do touro branco de Netuno. Desesperada para concretizar o seu desejo, a rainha recorreu a Dédalo e pediu-lhe que ele fizesse uma vaca oca de madeira, na qual ela pudesse entrar e ser possuída pelo touro sagrado. Dédalo, envaidecido pela confiança que a rainha depositara em seu talento de artífice, aceitou a tarefa. Da cópula entre Pasífae e o touro, nasceu o Minotauro. Quando o filho de Pasífae nasceu, Minos – não sabendo da trama entre sua esposa e Dédalo – pediu ao inventor que construísse uma prisão diferente de todas as outras, um esconderijo para a própria vergonha, uma casa para o Minotauro.

Dédalo, com a ajuda de seu filho Ícaro, erigiu um intrincado vai e vem de corredores que se entrelaçavam entre paredes intransponíveis, um labirinto à prova de fugas! O Labirinto de Cnossos. Para saciar a fome do Minotauro, o rei Minos mandava capturar jovens atenienses, sete moças e sete rapazes a cada sete anos, que eram servidos como refeição à besta meio homem-meio touro. Porque atenienses? Por vingança, já que o único filho de Minos, Androgeu, havia sido morto pelos atenienses. Com o tempo, a população de Atenas começou a indignar-se com o tributo. Na terceira vez de pagar a “dívida” a Minos, os atenienses enviaram seu mais valoroso guerreiro, Teseu. O oráculo de Delfos avisou a Teseu que ele só conseguiria matar o Minotauro se o amor lhe servisse de guia. E assim foi. Ariadne, filha do rei Minos, foi seduzida por Teseu, apaixonada ela instruiu Teseu a levar com ele um novelo de lã. À medida que Teseu adentrava a morada do Minotauro, ele ia desenrolando o fio do novelo, marcando o caminho percorrido, marcação que poderia reconduzi-lo à entrada/saída do labirinto.

Quando Teseu matou o Minotauro e conseguiu escapar do Labirinto – que supostamente era à prova de fugas –, a fúria do rei Minos voltou-se para Dédalo, o construtor. O fato é que era realmente impossível escapar do labirinto, mas o próprio Dédalo havia sugerido a solução do novelo para a apaixonada Ariadne. Ao que parece, Dédalo não conseguia resistir à tentação de mostrar-se engenhoso, inteligente e tudo o mais. A vaidade, expressa na necessidade de reconhecimento, era o ponto fraco de Dédalo, o que sempre o levava a se corromper. Foi assim, como punição por Minos, que Dédalo e seu jovem filho, Ícaro, se tornaram prisioneiros do labirinto que haviam construído.

No labirinto, Ícaro passava os dias se cuidando, afinal a vaidade era sua herança paterna. Dédalo, por sua vez, estudava, pensava, imaginava uma forma de escapar de Creta. Finalmente, Dédalo concebeu um plano audacioso. Ele construiu dois pares de asas, tecendo as penas e juntando-as com cera. Quando as asas estavam prontas, levou Ícaro para um canto, instruiu-o no uso do artefato e alertou-o sobre os perigos de voar próximo demais ao sol ou ao mar. Um curso médio, o equilíbrio entre o alto e o baixo, essa seria a rota segura para um vôo bem sucedido.

De um rochedo bem alto, pai e filho alçaram vôo. Por muitos quilômetros o jovem Ícaro seguiu seu pai, ateve-se à percepção da jornada que lhe fora passada. Mas Ícaro tinha seus próprios sonhos, acalentava os anseios próprios da juventude e seus sentidos ansiavam por mais de tudo aquilo que ele acabara de descobrir voando. Sentindo-se livre, Ícaro entregou-se ao prazer dos sentidos, embriagou-se de sensações: do toque do vento nos seus cabelos dourados, da visão do azul do mar confundindo-se com o do céu no horizonte, do som do rufar de suas asas, do movimento ascendente do seu corpo, do calor do sol na sua pele…

…O mesmo sol que aquecia a experiência sensorial do jovem Ícaro, acabou por derreter a cera de suas asas, lançando-o no mar. Na água, uma suave ondulação agrupava um punhado de penas, que flutuavam, sinalizando o ponto onde Ícaro caíra. Essa foi a última lembrança que Dédalo levou do seu filho.

Como Ícaro, todos aqueles que desejam a superação correrão riscos. Arriscar-se é um movimento que, do ponto de vista psicológico, assinala o desejo de expandir a própria percepção do mundo e das coisas. Aqueles que buscam explorar os limites dos sentidos, que buscam ver, ouvir, sentir, mais do que os outros, pagarão um preço, sempre! Se o preço será compensatório ou não, depende do quanto o risco foi calculado. A impetuosidade de Ícaro levou-o aonde ninguém mais havia ido, mas a sua imprudência limitou a experiência, minimizando as chances de aproveitar o vôo por mais tempo e de aperfeiçoá-lo. O segredo do sucesso dos grandes criadores – seja um cientista ou um artista, por exemplo – parece residir, em grande parte, na capacidade de correr riscos calculadamente.

A criatividade para efetivar-se sempre demandará do criador a capacidade de viabilizar aquilo que pensa e sente. O vislumbre, por mais arrojado e original que seja, não é suficiente para dar corpo a um projeto. Desenvolver condições para a experimentação, as tentativas, os erros e os acertos, é parte crucial de qualquer aventura criativa bem sucedida. Ícaro, como muitos de nós, deixou-se seduzir pela possibilidade de algo que ele não conhecia inteiramente. Voar, poderia ser a experiência mais significativa da vida de Ícaro caso ele tivesse sobrevivido para contá-la. A vaidade, a imaturidade e a arrogância de Ícaro não permitiram que ele aceitasse aquela primeira oportunidade de vôo como uma porta para algo que poderia ter sido muito maior.

Algumas vezes, porém, alguns incautos ícaros são necessários para nos mostrar a necessidade de limites, sejam limites internos que devemos aprender a nos impor, sejam limites externos que precisamos aprender a respeitar. Afinal, a criação parece iniciar-se no desejo de superação, desejo esse que só é possível quando reconhecemos que há um limite a ser superado.(Angelita Corrêa Scardua)