domingo, 18 de outubro de 2020

"A resposta fatal: Coisas de Deus não se pergunta."


Lembro-me que quando criança, envolvida por um ambiente familiar religioso, comecei a ler aquele livro que minha mãe e tantos outros diziam ser "a palavra de Deus" - a Bíblia. E perguntando aos meus pais muitas coisas sobre as histórias ali contidas, enchia-os de perguntas. 

Meus pais sempre tentando esclarecer dentro daquilo que conheciam, nem sempre conseguiam dar conta da menina curiosa e muitas dúvidas surgiam. Foi aí que num dado momento, cismei com a história de Adão e Eva e como poderiam eles ter povoado a Terra, tendo apenas dois filhos homens (Caim e Abel), afinal era essa a história que ouvia dos meus pais e de outros em relação a isso. Foi então, no "abuso questionador" já presente em mim que perguntei: "Se só existia Adão, Eva, Caim e Abel na Terra quando foram expulsos do Paraíso, então, Eva teve o restante dos filhos da Terra com seus próprios filhos e Adão?" Afinal a única mulher da história capaz de parir era Eva. E assim eu pensava naquele tempo. Perguntei isso à minha mãe e então a resposta fatal: "Coisas de Deus não se pergunta."

E sinto que esta resposta, é uma resposta que se encontra dentro de todos nós. Não foi dada a mim a toa, foi dada a mim porque tinha "vida" dentro de minha mãe, era algo vivo dentro dela e não apenas como uma crença dela. E vejo isso dentro do humano, seja em maior ou menor grau, mas vejo. Esta resposta está dentro de nós, não é nas instituições religiosas, só. É uma crença em nós, humanos, nem sempre consciente, nos limitando e não nos permitindo amadurecer, crescer. Há um sussurro dentro de todos nós dizendo: "Coisas de Deus não se questiona."

É só falarmos ou questionarmos algo em relação a religião ou espiritualidade para se levantar um pudor imenso nos freando em nossa espontaneidade, em nossa naturalidade de sermos quem somos - questionadores, curiosos. E eu nem vou mencionar e já mencionando, o fato de ser uma mulher, falando sobre o assunto. E não me refiro apenas às críticas, sejam negativas ou construtivas, falar de espiritualidade tem suas reservas em diversos níveis, seja em qual espaço for. E o que fica mais explícito, é: ou se fala a favor ou se fala contra, não há questionamentos ou de fato um olhar crítico no sentido de ir além dessas duas posturas - contra ou a favor. Como se só existisse isso diante do tema, mas não, existe mais. Existe o ser único nisso tudo e que vive sua espiritualidade e nem sempre é considerado.

Esse é um tema que estou revendo aqui já há muito tempo e talvez minha trajetória se configure dentro desse tema. Sim é apenas um olhar, mas um olhar que tem seus dois pés numa história; minha história, meu trajeto que não posso negar ou rejeitar, mas sim aceita-lo, compreendê-lo e transcendê-lo e trago a "tiracolo" a menina que em "seu abuso questionador" continua aqui, em mim a questionar.

Hoje sinto a espiritualidade muito mais como uma expressão natural, no homem do que qualquer outra coisa, mesmo que este se diga ateu ou mesmo, defina-se não espiritualizado, para mim, é algo inerente. E mesmo sabendo que muitos pensadores também disseram isso, melhor do que ler ou conhecer isso, é viver ou experienciar isso e certamente, é o que sinto e vivo. Somos seres espirituais, trazemos em nós aspectos, características e experiências que nos fazem ver e saber de algo que transcende a experiência consciente, material, concreta, raciocinada - somos dotados de sentimentos ou sentidos que transcendem certas conclusões apenas objetivas e nisso, já vejo a transcendência, o que chamo de espiritual. Mas, é verdade que essa palavra "espiritual" está desgastada e contaminada por sentidos que nem sempre colaboram à compreensão e a vivência do "ser espiritual" que somos. Por isso, resolvi aqui começar a trazer para mim, através das minhas reflexões (menina questionadora) algo que possa nos soltar desses sentidos limitantes que hoje, sinto, trás quando mencionamos, 
"espiritual".

Consigo ver o "ser espiritual" nas ações, na postura, na fala, no modo de se expressar - vejo-o ali, presente, mesmo quando este, não prega uma fé religiosa, mas não deixa de ser espiritual, algo que vai além do objetivamente, observável. Então, não posso negar o que sinto, o que vejo e percebo; não posso negar o que experiencio enquanto "ser espiritual" e nem minha história que se manifesta ali, na menina questionadora e dentro desse ambiente que me trouxe sem dúvida muito do que sou.

E não por isso ou até por isso, por estar sempre envolvida com esse assunto, tema e experiências, sei das manipulações e distorções trazidas também nas ações de muitos. Não posso dizer até que ponto há de consciência nessas manipulações, mas há sim manipulação egoica nisso tudo e em muitos casos com um "cheiro" de perversão ou maldade sim, no sentido de usar da inconsciência de uma maioria em detrimento de um poder desenfreado. Poder este que vem, às vezes em palavras doces como, "você tem que amar a todos". 

Questione isso, como assim? Como isso é possível se há pessoas que não simpatizo, que não gosto do jeito, que para mim são maldosas, enfim. Questione, sinta a sua realidade, como você sente e se relaciona e veja o quanto isso se encaixa em você, se há encaixe ou não, enfim. Mas, não aceite tudo sem antes, você passar o seu olhar por isso. Pense, é a sua vida que está em jogo, é você e amar mesmo, primeiramente só pode começar aí. E como bem disse Carl Gustav Jung: 

"Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro."

Prezo pela consciência em nossas ações e por isso, essa menina questionadora, hoje, se alia a uma mulher desconfiada de muitas coisas que se apresentam com um nome que para mim, é sagrado: "espiritual". Que possamos refletir mais e nos acolher mais verdadeiramente, em nossa intimidade sem nos negarmos em absolutamente nada porque estamos aí, dentro, inteiros a se apresentar como seres com grandes possibilidade de crescer e sermos melhores. Então, faça acontecer. Eu, aqui, do meu jeito, estou fazendo, e você? Sintamos!(Kátia de Souza - 18/10/2020 reeditado em 10/05/2021)