Nesse trecho, Jung fala um pouco sobre o mal disseminado na Alemanha com o advento da segunda grande guerra. E o mesmo fala o quanto foi difícil escrever esse artigo, pois, "minha mente se achava conturbada e como é difícil encontrar uma posição relativamente tranquila e equilibrada no turbilhão dos afetos". Para isso, seria necessário ter "muito sangue frio". E disso o mesmo discorre sobre o que ele chamou de "culpa coletiva" e antes disso (artigo anterior) o mesmo falou em "possessão coletiva". E traz através, daquilo que ele mesmo observa em si ao se colocar a disposição para escrever, aquilo que sente e conclui a partir de todo o conhecimento que possui, junto a psicologia humana.
Para mim, um artigo muito forte, considerando o nosso momento atual, devido as semelhanças do pensamento fascista tão presente em nosso país. E também comovente, pois, em meio a tudo isso, muito está sendo criado, sem o sabermos. Muito mais do que o observado estamos estabelecendo um "lugar" com essa liderança atual e suas consequências em nossas respostas afetivas, que marcará gerações adiante. E sangue frio, é algo que não tenho, realmente. Por isso, falar e refletir sobre o desgoverno atual, para além das nossas reações afetivas, para mim, é tão importante. Afinal, mesmo sem ter total consciência do que estamos criando, a responsabilidade é imensa e somos nós, o humano, no melhor e mais amplo sentido que essa palavra possui, que está em jogo. Segue abaixo o trecho, para refletirmos: (Kátia de Souza)
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"[408]Se considerarmos que nem todo homem mora psiquicamente numa concha de caracol, ou seja, que não vive longe dos demais e que o seu ser inconsciente se acha ligado a todos os outros homens, então um crime nunca pode ocorrer de maneira isolada como pode parecer à consciência. Ele acontece num âmbito bem mais vasto. A sensação que todo crime provoca, o interesse apaixonado pela perseguição e julgamento do criminoso etc., demonstram que praticamente todo mundo, desde que não seja insensível ou apático de forma anormal, é excitado pelo crime. Todos vibram conjuntamente, todos se sentem dentro do crime, tentam compreendê-lo e esclarecê-lo... Algo se acende, o fogo do mal que flameja no crime. Platão já sabia que a visão do feio provoca o feio na alma. A indignação e a exigência de punição se levantam contra o assassino e isso tanto mais violenta, apaixonada e odiosamente quanto mais ferver a chispa do mal dentro da própria alma. É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida em que acende o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção. Com isso, estamos irremediavelmente imiscuídos na impureza do mal, qualquer que seja o uso que dele fizermos. Nossa indignação moral cresce em virulência e desejo de vingança quanto mais forte arder em nós a chama do mal. Disso ninguém pode escapar, pois somos todos humanos e pertencemos igualmente à comunidade dos homens. Assim, todo crime desencadeia num recanto de nossa mente múltipla e variada uma satisfação secreta que, por sua vez, em caso de disposição moral favorável, produz uma reação oposta nos compartimentos vizinhos. Disposições morais fortes, porém, são infelizmente raras. Quando os crimes aumentam, a indignação predomina e o mal se converte em moda. De santo, louco e criminoso todos temos “estatisticamente” um pouco. Graças a essa condição humana universal existe, em todas as partes, uma sugestibilidade correspondente ou propensão. A nossa época, isto é, os últimos cinquenta anos, preparou o caminho para o crime. Será que, por exemplo, o grande interesse pelos romances policiais não nos parece suspeito?""[410]Ninguém imagine poder escapar a esse jogo de contrários. Até um santo deveria orar pelas almas de Hitler e Himmler, da Gestapo e da SS a fim de reparar a vergonha que sofria em sua própria alma. A visão do mal acende o mal na própria alma. Isso é inevitável. Não é só a vítima aquele que sofre o mal. Também o assassino e todo o âmbito humano que rodeia o crime são por ele maculados. Algo irrompe do sinistro abismo do mundo, envenenando o ar e contaminando a água cristalina com um gosto repugnante de sangue. Sem dúvida, somos inocentes. Somos inclusive as vítimas saqueadas, enganadas e violentadas, no entanto, talvez por isso, a chama do mal arda em nossa indignação moral. Assim deve ser, isto é, faz-se necessário que alguém sinta indignação e se torne a espada da justiça do destino: os maus atos devem ser expiados, pois do contrário os maus arruinarão o mundo ou os bons se verão sufocados em sua ira, o que, em todo caso, não trará nada de bom."
"[413] Deve-se ter bem clara a necessidade de certas condições para o desenvolvimento de uma tal degeneração. É necessário sobretudo que massas inteiras sejam deslocadas de seu solo e concentradas nas cidades e indústrias, sufocando-se numa ocupação unilateral de modo a perderem todos os instintos sadios, mesmo o da autoconservação. O nível do instinto de autopreservação cai na proporção em que aumentam as esperanças no Estado, o que é um mau sintoma. Depositar as esperanças no Estado significa que se espera em todos - Estado - menos em si mesmo. Todos se apoiam uns nos outros, num falso sentimento de segurança, pois o apoio de dez mil é como um apoio no ar. A diferença é que não mais se percebe a insegurança. A esperança crescente no Estado não é um bom sintoma e significa, na verdade, que o povo está a caminho de se transformar num rebanho o qual sempre espera de seus pastores os bons pastos. Logo o cajado do pastor se converterá em vara de ferro e os pastores em lobos. Não foi fácil contemplar como toda a Alemanha respirou aliviada quando um psicopata megalomaníaco disse: “Eu assumo a responsabilidade”. Quem ainda possui algum instinto de autoconservação sabe que apenas um impostor pode querer assumir a responsabilidade pela existência de um outro, pois ninguém em pleno juízo o faria. Quem tudo promete nada cumpre e, aquele que muito promete está na iminência de se valer de expedientes escusos para cumprir a promessa, abrindo as vias para uma catástrofe. A contínua expansão da assistência estatal é, por um lado, muito bonita, mas, por outro, bastante suspeita na medida em que retira do indivíduo a responsabilidade, produzindo cordeiros e pessoas infantilizadas. Ademais existe o perigo da exploração dos competentes pelos irresponsáveis, como aliás aconteceu em muitos casos na Alemanha. É preciso que se tente preservar ao máximo o instinto de autoconservação do cidadão, pois separado da raiz nutrícia de seus instintos o homem se converte num joguete de todos os ventos; nesse caso, ele não passa de um animal doente, desmoralizado e degenerado cuja sanidade só poderá ser restituída mediante uma catástrofe."
Carl Gustav Jung em "Aspectos do drama contemporâneo"
