sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Relato e reflexão sobre certos aspectos de um caso




"É muito difícil viver dentro de mim com meu sentimentos e pensamentos."


🦋Como ignorar essa fala? Como não querer saber desses sentimentos e pensamentos tão difíceis de conviver? Como não entender que certos sentimentos e pensamentos são realmente, aterradores, dolorosos e o quanto isso diz de nós, no mundo? Como estamos encarando a vida, a nós, o outro, nossas escolhas e tudo mais? O que é tão doloroso e que impede de avançarmos enquanto seres humanos, vivendo e podendo nos sentir livres para escolher coisas básicas em nossas vidas.


🦋Essa é a fala de alguém que não consegue sair de casa, não consegue sair e olhar outro ser humano nas ruas, não consegue ir sequer a esquina de casa. Os barulhos ou mesmo o canto de um pássaro faz doer os seus ouvidos, tudo que externamente se manifesta é doloroso. E diante desse sentir a mesma se torna arredia, impulsiva e se defende, muitas vezes, de forma seca, dura e até destrutiva. E só está em terapia devido a uma mentira do esposo que disse que iria receber uma amiga em casa. Sim, ela aceitou, sim ela não queria desagradar o marido, sim eu também aceitei e sim eu também menti. Mas, chegamos até ela e sim, ela entendeu todo o movimento, após algumas ações em resistência e nada agradáveis, afinal, foi através de uma mentira.


🦋Como destrancar essas grades em si mesmo? Como ajudar a encontrar a chave que a liberta? Para mim, só há um caminho. Aquele que um dia me soou parecido, aquele dentro de mim que um dia me trouxe a sensação dolorosa de: "preciso me proteger de algo ou alguma coisa que vai me ferir com certeza." E sim, estava ingenuamente acreditando que o outro tinha poder sobre mim, sim imaturamente estava dando mais crédito ao externo do que ao interno, sim ilusoriamente estava esperando do outro algo que só encontro em mim, mas mesmo assim a dor persistia e não saia do lugar em meu amadurecimento. Pude olhar para essa prisão, pude encontrar a chave que me detinha e então, saí do casulo e voei. Sim, guardando todas as proporções do que foi isso, assim aconteceu e acontece em muitos momentos nessa minha jornada. Agora, nesse estranho diante de mim, como é isso, como essa pessoa se sente? Ela se sente aprisionada como eu? Ela sente dor, medo, sufoco, o que ela sente? Como é a face dessa dor ou prisão dentro dela? Só ela poderá me dizer e me apresentar. E entrar nesse coração só com muito cuidado e só com muita verdade, a partir de agora e isto, também virou um aspecto a ser trabalhado ainda mais do que já é, normalmente - a confiança - de agora em diante, nessa relação, porém, resultante de um ato (mentira) necessário, visto a urgência da demanda.


🦋Diante das ações frente a dor - impulsividade, por exemplo a compreensão foi fundamental, o persistência em permanecer no caso, essencial. E não é uma questão de "passar a mão na cabeça", não é falta de "impor limites" é apenas uma questão de compreender o todo desse ser humano que possui em si reações também, de defesa da sua ferida aberta. É aceitação do que coletivamente, não pôde e não é aceito porque se encontra incompatível com a vida social, por exemplo.


🦋E aqui apenas quero deixar o recado sobre o quanto estamos ou somos padronizados em nossos conceitos, achamos que temos respostas para tudo e de como agir diante de determinadas condutas que não nos agrada ou mesmo que nos denunciam em nossas peculiaridades. O quanto certas respostas cabe somente ao outro trazer e não nós. Por isso, deixe um pouco de lado as questões egoicas que me cabem e se encontram nesse relato, pelo menos por alguns minutos e vá além do ego. Reflitamos juntos.


🦋Quando falamos de "ser humano" estamos falando de um universo infinitamente vasto e não de conceitos aprendidos ou teorias, estamos falando de vida e nessa cabe todas as possibilidades. E então, que possamos refletir sobre o quanto estamos ditando regras para coisas que não aceitamos, à vida alheia. Se não aceitamos, cabe a nós decidir o que fazer e não apenas resumir o outro segundo a nossas crenças e ideias ou querer que alguém atue como nós atuaremos. Essa é minha conduta, esse é o meu olhar, esse é o meu trajeto e isso não cabe a outro seguir ou não, mas respeitar as escolhas e formas de atuação do outro é imprescindível quando estamos falando de convivência, quando estamos falando de humanidade e sem falar em afeto.


🦋Se não sabemos como fazer, se não damos conta de alguma situação, se não queremos ou não aceitamos algo que possamos assumir isso, nos afastando e não desrespeitando o "ser humano" que ali se encontra. Tá mais do que na hora de nos tornamos, realmente, mais humanos. Lidando melhor com nossos impulsos, certamente, aprenderemos a lidar com os impulsos que a vida nos oferece dia-a-dia em diversas situações. E em muitos momentos, a melhor forma de lidar com nossos impulsos, é nos afastar mesmo, nem que seja temporariamente.

E você pode dizer: "mas isso é um caso, é seu papel como psicoterapeuta". Bem, se não posso considerar a humanidade (minha e do paciente) que está envolvida em todas as manifestações da vida e estendê-la em minha convivência ou meio em que vivo; se o caso é apenas algo restrito ao setting terapêutico e não diz de um reflexo da própria vida, então, tenho que nascer de novo para compreender isso. Afinal, a vida é no ser humano, independente de onde o mesmo se encontra. O setting apenas é o espaço seguro onde podemos de alguma forma trazer a nós mesmos com maior integralidade. Aprendemos também a sermos mais humanos em nossas profissões, basta que ouçamos para além das exterioridades, papeis, funções, objetividade, etc.


Obs.: relatado devidamente autorizado e resguardando certos detalhes que violam a privacidade do paciente.

Kátia de Souza - 08/10/2021