quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Diálogo poético com Guimarães Rosa

Arte de Gustav Klimt

O Sono das Águas
Guimarães Rosa


Há uma hora certa,
no meio da noite,
uma hora morta,
em que a água dorme.
Todas as águas dormem:
no rio,
na lagoa,
no açude,
no brejão,
nos olhos d'água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca,
a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...
Águas claras,
águas barrentas,
sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas,
caudais,
seivas das plantas,
fios brancos,
torrentes.
O orvalho sonha nas placas das folhagens
e adormece.
Até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem,
nessa hora de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando , a noite toda,
porque a água dos olhos
Essa... nunca tem sono...
......................................

e jamais há de dormir,
as lágrimas, águas doadas
escorridas, molhadas ...

na profunda confiança
de poder desaguar,
aos pés dos olhos,

lavar e levar

dali o que à terra doa
e faz nascer em gotas

gotas do viver, colher, florir ...

e isso... é apenas um instante
desse líquido em graça
doado para dizer do divino, 
... intrínseco ao homem!

(Kátia de Souza)
23/10/2019