sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

O cão morreu, o homem também: o cão do Carrefour e o homem desumanizado. por Flavio Cordeiro


O homem morre simbolicamente a cada ato de barbárie.

Carlos e Sertanejo: a Dra. Nise acreditava que os cães são a ponte afetiva que humaniza o homem.

A Dra. Nise da Silveira costumava afirmar que os cães eram seus co-terapeutas, ela introduziu os cães no tratamento dos clientes esquizofrênicos do Centro Psiquiátrico Pedro II no Engenho de Dentro, obtendo grande sucesso terapêutico. Segundo ela o cão “nunca provoca frustrações, dá incondicional afeto, sem pedir nada em troca, traz calor e alegria ao frio ambiente hospitalar.” O cão realiza a ponte afetiva que faltava aos internos, isolados do mundo pelos muros do hospital e pela estigmatização da loucura.

É como se a Dra. Nise intuísse desde muito cedo que os cães humanizam o homem ao reavivar seus laços afetivos.

Na biografia da Dra. Nise escrita por Luiz Carlos de Mello (Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde — Automática Edições Ltda, 2014) , uma das passagens mais emocionantes é a história de Carlos e do cão Sertanejo. Carlos era um paciente extremamente dissociado, sua expressão verbal era quase ininteligível, no entanto, quando o assunto era os animais, sua fala se tornava irreconhecivelmente fluente, numa clara demonstração do poder transformador do afeto.

Numa certa ocasião Carlos dirigiu-se à Dra. Nise: “Quero dinheiro para despesas de Sertanejo”. A Dra. perguntou espantada: “Que despesas?” Ao que Carlos, resoluto, respondeu: “Água oxigenada, mercurocromo, gase”. Sertanejo havia ferido a pata, Carlos foi à farmácia, fez as compras, trouxe o troco certo do dinheiro e fez um curativo com rara perícia. Sertanejo ajudou Carlos a falar articuladamente, a cruzar os muros do hospital, a fazer compras e dar o troco certo: algo talvez impensável para o Carlos de antes. O cão ajudou Carlos a se expandir como ser humano e o fez através do mais forte dos remédios: o afeto.

Nessa semana um homem agrediu covardemente o cão “Manchinha” que vagava pelo estacionamento de um supermercado. Bateu-lhe com uma barra de metal.


O cão morreu, o homem também: o homem morre simbolicamente a cada ato de barbárie.

Ao contrário de Carlos, que se expandiu na relação afetiva com Sertanejo, a execução de Manchinha mata o bicho e diminui o homem.

Consegue-se ter uma ideia do grau de humanidade existente em uma sociedade pela forma com que ela trata aqueles de seus membros em condição de maior fragilidade (nossas crianças, nossos velhos, nossos loucos, as minorias vulneráveis à agressividade dos intolerantes, etc.) mas também pela forma como trata os seres não humanos: as florestas, os lagos, os rios e sobretudo os animais.

Certa vez, conhecendo Machu Picchu, nos aproximamos do Vale dos Incas, nesse instante, nosso guia, sabedor do meu interesse por questões históricas e mitológicas, se aproximou de mim e disse: “O senhor está vendo aquele rio ali abaixo? É o rio sagrado dos Incas. Para os Incas ele era considerado um Deus: Willcamayu. Só que agora está poluído e cheio de esgoto. Agora ele não é mais um Deus, ninguém joga cocô em um Deus, não é verdade?” Admirei a grande capacidade de nosso guia de sintetizar o grande adoecimento de nossa época: Quando o homem dessacraliza sua relação com a vida, ele perde sua humanidade.

Quando dessacralizamos a relação com a vida do outro, seja ela a vida dos animais, a vida do planeta, e de outros seres humanos, nos tornamos seres perversos: aqueles para quem o outro, não passa de mero objeto inanimado, que pode ser eliminado, sem qualquer sentimento de culpa, assim que deixar de ser útil, ou quando começar a atrapalhar.

Por que não queimar a floresta, se atrapalha a expansão da soja? Por que não exterminar as reservas indígenas, se elas atrapalham a mineração? Por que não eliminar a minoria étnica ou comportamental, se ela atrapalha a visão de mundo dominante dos mais fortes e poderosos? Por que não quebrar a espinha dorsal de um cão, se ele atrapalha a rotina do estacionamento do Carrefour?

Escutei de Tereza Caribé, Psicóloga Junguiana da Bahia, as seguintes palavras, e não as esqueci:

“Costumamos confundir progresso com civilização, nada mais errado. Pode haver progresso bárbaro: nos tornamos bárbaros sempre que nos desenraizamos, excluímos o outro e nos dessensibilizamos.”

Atacar um animal indefeso com tamanha violência, diz muito sobre como um ser humano pode se dessensibilizar. A reação das pessoas nas redes sociais e na imprensa acende uma chama de esperança, ao mesmo tempo, a resposta dessensibilizada e “econômica” e do Carrefour, disse muito mais do que as poucas linhas do comunicado pretendiam revelar.

Em tempo:

No dia 6 de Janeiro de 1960 a Dra. Nise entrou de férias do hospital. O Administrador do Centro Psiquiátrico, aproveitou-se de sua ausência e retirou, disfarçadamente, numa ambulância, os seis cães co-terapeutas do hospital e levou-os para serem sacrificados no Serviço de Veterinária da Mangueira, sob o pretexto de que a presença dos animais violava as regras sanitárias. Alguns homens não suportam o poder transformador do afeto, talvez porque nunca o tenham recebido na vida.

A Dra. Nise não teve dúvidas: ao tomar conhecimento do fato pediu seu imediato afastamento do serviço, que naquele momento gozava de amplo reconhecimento e notoriedade na sociedade e na imprensa. Ela só voltaria se os cães voltassem junto. Produziu-se um escândalo, os jornais entraram na polêmica: não fazia sentido que um burocrata interferisse num tratamento com visíveis resultados positivos, por pura perseguição. No dia 1º de fevereiro de 1960, a Dra. Nise foi readmitida: ela e os seis cães. Era a vitória do afeto sobre a barbárie.

Vida longa à Manchinha! E que o segurança que cometeu esse ato, possa receber a devida assistência, (para além das punições cabíveis). Ao adotar o linchamento como prática, nós também nos desumanizamos.

Flávio Cordeiro é Psicólogo e psicoterapeuta de orientação junguiana.