O deserto
[IH iii(r)]
Cap IV
Por que é um deserto meu si-mesmo? Será que vivi por demais fora de mim, nas pessoas e nas coisas? Por que evitei meu si-mesmo? Eu não me era caro? Mas eu evitei o lugar de minha alma. Eu era meus pensamentos, depois que não era mais as coisas e as outras pessoas. Mas eu era o meu si-mesmo, colocado diante de meus pensamentos. Eu devo também elevar-me acima de meus pensamentos ao encontro de meu próprio si-mesmo. Para lá vai minha viagem e, por isso, ela conduz para longe das pessoas e das coisas, à solidão. Isto é solidão, estar consigo mesmo? Solidão só quando o si-mesmo é um deserto? Devo abrir o jardim encantado do deserto? O que me leva para o deserto e o que devo fazer lá? Existe uma ilusão de que não posso mais confiar ao meu pensamento? Verdadeira é apenas a vida, e tão só a vida que me leva ao deserto, realmente não meu pensar que gostaria de voltar para as pessoas, para as coisas, pois lhe é sinistro estar no deserto. Minha alma, o que devo fazer aqui? Mas a minha alma falou-me e disse: "Espera". Eu escuto a terrível palavra. Ao deserto pertence a dor.
Pelo fato de eu dar à minha alma tudo o que podia dar, cheguei ao lugar da alma e descobri que este lugar era um deserto quente, seco e estéril. Nenhuma cultura do espírito é suficiente para fazer de tua alma um jardim. Eu cuidei de meu espírito, do espírito dessa época em mim, mas não daquele espírito da profundeza, que se volta para as coisas da alma, do mundo da alma. A alma tem seu mundo que lhe é próprio. Nele só entra o si-mesmo ou a pessoa que se tornou totalmente seu si-mesmo das coisas e das pessoas, mas foi precisamente assim que me tornei presa fácil de meus pensamentos, sim eu me transformei totalmente em meus pensamentos.
Também de meus pensamentos tive de me separar, desviando deles meu desejo veemente. E imediatamente percebi que meu si-mesmo se transformava em deserto, onde somente brilhava o sol dos desejos não satisfeitos. Eu fora vencido pela esterilidade infinita desse deserto. E como poderia lá florescer alguma coisa, se faltava a força criadora do desejo? Onde existe esta força criadora do desejo, ali brota do chão a semente que lhe é própria. Mas não te esqueças de esperar. Não viste como tua força criadora se voltou para o mundo como debaixo dela e através dela se movimentaram as coisas mortas, como cresceram e floresceram e como teus pensamentos fluíram em ricas torrentes? Se tua força criadora se voltar agora para o lugar da alma, verás como tua alma vai reverdecer e como seu campo produzirá frutos maravilhosos.
Ninguém pode furtar-se ao esperar, e a maioria não conseguirá suportar esse tormento, mas se lançarão outra vez com gula sobre as coisas, pessoas e pensamentos, cujos escravos se tornarão a partir desse momento. Pois então ficou claro que esta pessoa é incapaz de perseverar além das coisas, pessoas e pensamentos e, por isso, tornam-se seus senhores, e ela se tornará seu bufão., pois, não pode ficar sem eles, nem mesmo o tempo necessário para que sua alma se tenha tornado um campo produtivo. Também aquele cuja alma é um jardim precisa das coisas, pessoas e pensamentos, mas ele é seu amigo e não seu escravo e bufão.
Todo o futuro já existia na imagem para encontrar sua alma, os antigos iam para o deserto. Isto é uma imagem. Os antigos viviam seus símbolos, pois para eles o mundo ainda não se tornara real. Por isso iam para solidão do deserto, para ensinar-nos que o lugar da alma é deserto, solitário. Lá encontravam a plenitude das visões, os frutos do deserto, as flores maravilhosas e singulares da alma. Pensa diligentemente nas imagens que os antigos nos legaram. Elas mostram o caminho daquele que vem. Olha para trás para a ruína dos ricos, para o crescimento e a morte, para o deserto e os mosteiros. São as imagens daquele que vem. Tudo está predito. Mas quem sabe interpretá-lo?
Se dizes que o lugar da alma não existe, então ela não existe. Mas, se dizes que ele existe, então ele existe. Observa o que diziam os antigos na imagem a palavra é ato criador. Os antigos diziam: no princípio era a palavra. Considera isto e medita nele.
As palavras que oscilam entre a tolice e o sentido supremo são as mais antigas e as mais verdadeiras.
Carl Gustav Jung em "O Livro Vermelho" - Liber Novus
