segunda-feira, 2 de março de 2020

A voz do "eu" e do "si-mesmo" em "Um Sopro de Vida" (obra póstuma de Clarice Lispector)

"(...)O livro póstumo de Lispector evidencia a forma como ela criava, descreve a origem e o conteúdo de suas personificações. Um Sopro de Vida evidencia também a importância que a realidade inconsciente possuía para a escritora. A argumentação de que não se pode generalizar a forma de criação de Lispector a partir de um romance apenas, é refutada em função das representações contidas no romance póstumo as quais evidenciam a realização de um processo iniciado no primeiro. Um Sopro de Vida sintetiza toda a obra de Lispector. De mais a mais, aí também está presente a certeza de Lispector da existência de outra realidade além da realidade cotidiana. E, por ser a edição póstuma, integra a grande síntese clariciana.(...)"

O narrador-autor em Um Sopro de Vida evidencia o deslocamento da voz narrativa do eu para o si-mesmo:

[...] E, como eu respeito o que vem de mim para mim, assim mesmo é que eu escrevo [...] Eu sei que este livro não é fácil, mas é fácil apenas para aqueles que acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço, eu me esqueço de mim. Eu que apareço neste livro não sou eu[...] (p. 19).

Quando o narrador-autor afirma que respeita o que vem dele para ele mesmo significa que o eu recebe algo dele mesmo, e esse outro de quem recebe também é ele, isto é, o ele mais ele, o si-mesmo, a instância mais profunda dele nele mesmo. O narrador declara que este livro não é fácil, mas o é para aqueles que acreditam no mistério. Como vimos o mistério não é seara do eu que, através da luz da consciência, lida com o material do cotidiano inteligível. O contexto do eu é a realidade concreta definida e situada pelas coordenadas do tempo e do espaço. O mistério implica algo que a nossa inteligência se mostra incapaz de compreender ou explicar tais como o Mistério da Santíssima Trindade, os Mistérios de Elêuses, os Mistérios de Ísis, pois os mistérios só são compreensíveis para os iniciados nos próprios mistérios, isto é, para aqueles que lidam com a realidade inconsciente da vida, ou ainda, na voz do narrador-autor, para aqueles que trabalham nos solilóquios do escuro irracional. Desta forma, o que nomeamos mistérios se situa na esfera do desconhecido como referiu Clarice Lispector: naquele núcleo mais íntimo em nós, e desconhecido por nós mesmos, e que no fragmento acima o narrador afirma sê-lo, pois ao escrevê-lo não se reconhece. Assim, o eu regente dos processos psíquicos conscientes não está escrevendo sozinho; neste momento ele se encontra como que afastado do controle da situação, o eu não é mais o centro da personalidade, cedeu a regência dos processos psíquicos para o si-mesmo, que é ao mesmo tempo o novo centro da psique e a personalidade total. Encontramos a consciência da existência dessa voz no seguinte excerto: “Eu que apareço neste livro não sou eu” (p. 19). Neste sentido a figura da narradora em Clarice Lispector circunda as regiões do si-mesmo. Na voz do narrador-autor:“[...] Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional” (p. 20).  instância da narração expressa simultaneamente a pluralidade e a unidade do si-mesmo à semelhança do narrador onírico. A narradora no universo ficcional viu a luz se fazer na escuridão e participa do mistério alquímico no texto. Ela espera que o leitor seja capaz de perceber o sagrado contido neste livro. Para isto, ela interpela o núcleo mais íntimo de quem o ler, o si-mesmo. O sagrado habita nas obscuras regiões do desconhecido na psique humana.

Em seu texto há um fio movendo-se em círculos e, sinuosamente, costura os diversos fragmentos que constituem sua obra. Esse fio foi nomeado busca e transformação de si mesmo, e os fragmentos, o modo como operou e evidenciou a composição da obra. (Maria Conceição Soares Beltrão Filha em " Um olhar Hermético sobre o texto de Lispector")