terça-feira, 16 de junho de 2020

"Mitologia Ocidental: Dissolução e Transformação" por ALAN W WATTS (trecho)

desconheço o autor da image, via Google
"Mais adequada a ciência do século XX seria uma imagem orgânica do mundo, o mundo como um corpo, um amplo padrão de energia inteligente que tem um novo relacionamento conosco. Não estamos no mundo como súditos de um rei, nem vítimas de um processo cego. Não estamos no mundo de modo algum. Somos o mundo! O mundo é você. Nesse mito orgânico do mundo, cada indivíduo deve ver a si próprio como responsável pelo mundo. Não pode olhar para trás e dizer a seus pais: “Vocês me meteram nisso, miseráveis!" Nos juizados de menores, as crianças que ouviram falar em psicanálise podem dizer: "Não tenho culpa de ser delinquente. Foi minha mãe que me prejudicou e tenho complexo de Édipo." E a imprensa diz: "Não é culpa da criança; temos de cuidar dos pais", e os pais dirão: "Não podemos evitar a neurose; foram nossos pais que nos prejudicaram." O que remete a história do Jardim do Éden, quando o Senhor Deus perguntou a Adão: 'Acaso comeste do fruto da árvore que eu tinha ordenado que não comesses?", e Adão disse: "A mulher que me deste por companheira deu-me do fruto da árvore e comi." E quando o Senhor perguntou a Eva: "Por que fizeste isso?", ela disse: 'A serpente me enganou...", e o Senhor Deus olhou para a serpente e a serpente não disse nada. Ela simplesmente não culpou o outro. Ela sabia a resposta porque o Senhor Deus e a serpente haviam combinado nos bastidores, muito antes que isso acontecesse, que iriam representar essa cena, pois a serpente é a mão esquerda de Deus e "não deixe que a sua mão direita saiba o que a esquerda está fazendo". Como vimos, é um jogo de esconde-esconde. Não vejo a menor possibilidade de haver o que chamo de uma atitude basicamente saudável na vida quando se culpa o outro pelo que acontece. Como se diz no budismo, tudo o que acontece é seu carma, o que significa que é obra sua. Pode parecer um pouco megalomaníaco, como se você dissesse: sou responsável por tudo, como se fosse Deus. Mas só é megalomania se você usar a imagem monárquica de Deus, e é por isso que não se pode dizer no Ocidente: "Eu sou Deus." Se disser, vão enfiá-lo num hospício, porque você está dizendo: "Sou o dono daqui e você deve me adorar como divindade."

Mas se temos outra imagem de Deus, uma imagem orgânica semelhante ao corpo humano, quem é que manda? A cabeça? O estômago? O coração? Você pode argumentar a favor de cada um. Pode dizer que o estômago é fundamental porque chegou primeiro. É o órgão que distribui vitalidade, alimentando todos os outros órgãos. Portanto, o estômago é primordial. Pode argumentar que a cabeça, um gânglio de nervos no ponto mais alto do canal alimentar, é um acessório do estômago e evoluiu a fim de parasitar o ambiente com mais inteligência para arrumar alguma coisa que alimente o estômago. A cabeça protesta: "Não, está certo que cheguei depois e o estômago já estava lá, mas João Batista chegou antes de Jesus Cristo. Eu, como cabeça, sou o produto mais recente e mais evoluído, e o estômago é meu servo. O estômago é que fica parasitando o ambiente a fim de dar energia para que eu possa me dedicar à filosofia, cultura, religião e arte." As duas argumentações são igualmente válidas ou inválidas. O que importa num organismo é a cooperação, ou como diz Lao-Tzu, "ser ou não ser surgem mutuamente. Longo e curto subentendem um ao outro; difícil e fácil se implicam mutuamente". Da mesma forma, sujeito e objeto, eu e você. Dentro e fora. Todos vêm a ser juntos. Tal como coração e cabeça, cabeça e estômago são recíprocos e há uma cooperação na qual a ordem não deriva da imposição de cima, de um ordenante."

("Mitologia Ocidental: Dissolução e Transformação" por ALAN W WATTS)