domingo, 16 de fevereiro de 2020

Mistério revelado

imagem, créditos na mesma

          É tão estranha a consumação dos dias, consumação no sentido de se ver; ver com os olhos da alma, ver com os sentidos a frente sem os conceitos que nos definem e definimos tudo; sim, não é possível nos desvencilharmos deles todos e quando assim pensamos, estamos a mercê dos mesmos. Contudo, é ver, ver com a largura do corpo ou mais, ter-se em si olhos tão grandes que ultrapasse os limites do real e concreto estado de ser humano coerente e chegue a loucura daqueles ditos doentes. Bem, não é adoecer no sentido da cabeça que nos ensinaram por aí, mas é conceder esse olhar agigantado até mesmo para o que se entende sobre loucura. Já tentou ir além da doença que te ensinaram evitar? E aqui não tem como não se lembrar de minha mãe dizendo: “Coisas de Deus não se questiona.”

          Em sua sabedoria rasa, minha mãe sabia das coisas e somente conseguia trazer aquilo que lhe era pertinente e coerente, sem dar vazão as vozes loucas que nos invadem. Então, ela dizia isso sempre: “Não se questiona as coisas de Deus.” Mas, era algo inevitável, pois, do ventre dessa terra já nascia os rebentos que quebrariam todas as barreiras desta sábia incoerência, para retornarmos ao já sabido, mas era preciso o trajeto e então, como não questionar o maior de todos os mistério à uma menina de nove anos?

          Era imprecisa a loucura naquela época, mas adoeceu de jeito os cabelos e as ideias da menina saltitante entre patins, bicicleta e corda e em tudo que pousava seus olhos, lá estava ela, dizendo: “Deus, você está aí?” Calava-se... silêncios infindáveis a tomavam pra si...  e nada ouvia porque em si já tinha encrustado a fala materna, então, como pecar perante o amor mais amor que ela conhecia? Mas, desobedecia em partes porque era de sua natureza e cumpria com seu destino; nada de especial, pois, sempre presenciou outros tantos olhares, entre uma rua e outra, de certas crianças; olhares longínquos e corpos agitados, perscrutando vielas, recantos e como uma sonda espacial, vigiava todos os passos do universo para saber daquele mistério dos mistérios.

          E foi assim que nos limites da sanidade e o que lhe diziam ser loucura, todas as vestes ou roupas concedidas a mesma, foram sendo tiradas, uma a uma, até que nua, sem saber-se mais por onde resguardar-se, presenteou-se com respostas recolhidas entre tantos jardins e seus detalhes. Jardins estes, vistos nítida e claramente, naqueles olhares todos e estes, por sua vez, viram também os seus olhos e neles, sorriam risadas altas e intermináveis, confirmando uma procura que se encontrava ali, naquele reencontro. 

          Transpor os limiares da loucura, não é algo muito tranquilo num mundo muito normal, pois, tudo o que é a partir desse rótulo já lhe concedido há tempos, nada lhe gera credibilidade ou elos/vínculos muitos seguros, sempre são frágeis, sempre; como a certeza materna pronunciada há tanto tempo, mas nunca, nunca mesmo são irreais, possuem todas,  uma verdade datada e caracterizada pela soma de certos fatores invisíveis aos olhos comuns.  Porém, para sabermos das verdades, eis que temos que ultrapassar os limites das mesmas e invadir as insanas mentiras que contamos a nós todos e até certo ponto, contar a nós mesmos que estas, são verdades. E  passando esse impasse, certamente ciente de que na verdade, a verdade é indiferente a tudo isso, certamente, encontrar-se-á todos os jardins, todos os olhares – o seu olhando para eles e eles olhando para você. É, é louco mesmo, mas é tão bom enlouquecer assim, porque nisto, percebe-se a verdadeira estada no mundo e um mistério além de todas as certezas a ser respeitado e compreendido, através, de uma voz companheira que sussurrada, lhe acompanha uma vida toda. Sempre, sempre esteve ali. E era esta a voz que calava diante do insondável mistério, revelando-se em meio a todo aquele silêncio.

          Consumar seus dias além das certezas, nem sempre é confortável, mas é justamente, junto a todos os olhares que você entende o porquê e então, acolhido em si tudo isso, nada mais em falta lhe incomoda e tudo lhe é passível de ser vivido. Sim, até mesmo a loucura dita e consumada/vivida por alguns é tão, tão compreensível. Nada é para sempre e tudo é ao mesmo tempo eterno, esse “tudo” que não cabe numa só razão para expressar-se em meras explicações e apenas nos cabe recolher entre os olhares, jardins da vida espalhados por aí. E não se preocupe, reconhecerá sempre, os mesmos, eles vagam sempre como os seus, pois, não vivem pousados apenas, eles voam. Sim, eles voam!

(Kátia de Souza em Ensaios de um Novo Tempo)
(16-02-2020)